Porque o de dentro não ganhou vida naquele momento, ganhou hoje:
Anotei as datas no papel para não esquecer e precisei vir aqui, para ser honesta com você.

Eu sou viciada em datas. Apesar de não decorar nenhuma e achar o momento muito mais interessante que alguns números-estigmas.
Eu também não estou por trás deste texto, apenas empresto as minhas mãos e algumas memórias para esta outra menos provida.
O que eu, entenda bem : eu, quero dizer é que não estou concebendo isto e tampouco permitindo, apenas deixo esta criança brincar de letras e sonhos.
Em tempo, o que realmente importa é a falta de importâcia. O objetivo é o ponto final, mas realmente não importa o ponto final e sim que houve, já existiu um ponto de início.

- Falemos sobre o início, que é o de dentro...

Eu não vejo a luz do dia há séculos e era de se esperar que qualquer idéia aqui cheirasse a mofo e desordem.
Sou alérgica, espirro toda essa sujeira porque meu corpo rejeita o que eu digo que é vida. Ele devolve, como um ingrato, todo o ar que consegui reunir.
Ele me diz assim na cara dura e espelho polido : "Isso não presta!"
Agora eu não sei explicar se é o espelho que fala comigo ou se o movimento é inverso.
Falo tão pouco que não tenho a esperteza do que é meu, do que é do autor frânces e do que é da doença.

- Entenda que eu estou nua.

O convite de mostrar meu corpo marcado foi realmente tentador. Não me é absurdo deixar que me veja assim, afinal , eu carrego esta pesada caixa de 1,68 que mal me sustentam a alma, por muito tempo.
Mas veja bem, querida - Eu não quero escandalizar você.
Posso me cobrir, se preferir.

Eu estou na sua frente e posso sentir cada pedaço do meu corpo tremer, as extremidades perderam a sensibilidade ao toque e tenho medo de não conseguir caber só em observar.

...seu corpo tem o brilho de dias claros, mas a tinta parece não ter pego a alma e isso é triste, minha querida.
M.eu.
Em dias assim , em que você percebe que já está na garganta do mundo e pronto para ser o engolido da vez, que eu penso em respirar, mostrar que meus olhos estão abertos e não - Eu não estou morta, ainda que por ainda : Não vai ser fácil mastigar meus sonhos.
Eu zelo nem que seja pelo trabalho que tive em tecer todos eles, zelo pelas tintas que gastei ao colorir e zelo pelos que me fizeram ter vontade de pegar o papel e o lápis.

Então eu vou deixar que falem:


“É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano”.

[ Caio Fernando Abreu ]